quinta-feira, novembro 27, 2003

Versos da Mão Esquerda

Em Portugal há e sempre houve muitos poetas desconhecidos. A maior parte deles são muito justamente desconhecidos – e sorte a deles em não serem mais conhecidos.
Há, porém, de quando em vez, descobertas singulares. Há poetas esdrúxulos (no sentido de casos originais, singulares, raros, fora da regra) que mereciam mais detida atenção e conhecimento.
Veja-se o caso poético deste que agora apresento em amostra.
José Jacinto Cutileiro nasceu em Évora no ano de 1911 e faleceu em Lisboa no ano de 1956. De sua formação académica doutorado em Medicina. Deixou apenas um livro publicado: “Versos da Mão Esquerda”.
Este o poema que deu nome ao livro.

VERSOS DA MÃO ESQUERDA

Saúdo aqui a mão
Com que estas linhas traço
Ossuda extremidade
Do meu sinistro braço.

Sinistro: contrário de dextro.
Dextro, em sentido corrente,
Que tem jeito, habilidade,
Que é capaz, inteligente.

Que sabe desempenhar-se
Das tarefas complicadas
A que a vida bem obriga
De maneira apropriada.

Sinistro, neste sentido
Corrente que mencionei,
Que é sombrio, propenso a crime.
Que não conhece outra lei

Senão a obcecação
Da sua própria vontade.
Ainda noutro sentido:
Desastre, calamidade.

Saúdo pois esta mão
Sinistra que, paciente,
Vai transportando ao papel
O que me passa na mente.

Por isso de ser sinistra,
Porém, é bem natural
Que dê sua preferência
Ao que chamamos de mal

Que se compraza traçando,
Em correcta ortografia,
Aquilo que só de noite
Ousa vir à luz do dia.

O filho que cada um
Recusa, à hora chegada,
Por ter sido mal nascido
De uma boda improvisada.

E, diligente e ossuda,
A mão sinistra e pequena;
Não por mal, mas por ser
Assim, sinistra e pequena

Sem qualquer consideração
Por todo o resto de mim,
Pela sua dextra irmã
Que nunca se porta assim,

Vai lançando no papel,
Aos olhos de quem quer ler,
Quanto eu sem ela decerto
Nem chegaria a saber.

Por isso a saúdo aqui.
Por essa sua coragem
Lhe presto, neste momento,
A mais rendida homenagem.

Mas porque sei que, sem ela,
Bem melhor vida teria
Apesar de a estimar tanto
Talvez a adextre um dia.


José Jacinto Cutileiro