quarta-feira, novembro 19, 2003

Papéis Velhos

Constatando que o Dr. Cruz Rodrigues tem vindo a puxar pelas memórias, e porque a história sempre foi uma das minhas paixões, resolvi ajudar recorrendo a material de arquivo.
E, como se verá, a fontes indiscutivelmente autorizadas. Nada menos que o pomposo e solene “Relatório do 28 de Setembro de 1974”, editado pelo Movimento das Forças Armadas, no ano da desgraça de 1975, no qual a “comissão ad hoc encarregada de investigar os acontecimentos do 28 de Setembro” deu a conhecer ao país e ao mundo as malfeitorias de que tinham sido capazes as negras forças da reacção no período subsequente à alvorada libertadora – até ao dito 28 de Setembro, altura em que as forças da liberdade se tinham encarregado de pôr fim a tais desmandos, pondo a bom recanto, em levas prisionais de centenas de cada vez, os malfeitores que não puderam ou quiseram atempadamente colocar-se no seguro do exílio.
Por agora fica só aqui uma pequena amostra; a fls. 23 e 24 figuram uns trechos directamente relacionados com o que tem vindo a ser publicado na Aliança Nacional. Ora lá vai.

“Por agora, detenhamo-nos na enumeração de alguns dos factos mais significativos apurados, após termos procedido à análise de número considerável de documentos e termos apreciado as declarações de detidos e outras pessoas chamadas a depor.
A matéria de que dispomos permite afirmar, desde já, que manobra de tal envergadura fora objecto de preparação consciente e responsável. Com efeito, a partir de fins de Julho, o País começou a assistir a uma ofensiva orquestrada pela extrema direita, que se manifestava nas inscrições provocatórias, na difusão de boatos alarmistas, numa ampla afixação de cartazes com palavras de ordem reaccionárias e ainda, com especial relevo, através de uma certa imprensa identificada com o seu ideário. Nesta imprensa se destacaram os periódicos "Tempo Novo" (órgão do Partido Liberal), "Tribuna Popular" (órgão do Partido do Progresso) e "Bandarra", que pretendia apresentar-se como independente para se poder afirmar "imprensa livre".
4. Este último - propriedade da "Editorial Restauração" que meses antes suspendera a publicação de um outro semanário cronicamente deficitário , e que também lhe pertencia, "O Debate" - merece uma referência particular, seja pela forma opulenta com que se apresenta, seja pela matéria criminosa com que preenche as suas páginas.
Quanto ao primeiro aspecto - o do financiamento do luxo das edições - refira-se desde já que o Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa aceitou duas livranças de quatrocentos mil escudos, subscritas pelos administradores da editorial.
Este empréstimo justificava-se, uma vez que o movimento da empresa não era de molde a proporcionar-lhe lucros que pudessem cobrir os custos do semanário. Diga-se ainda, a propósito, que dela são accionistas preponderantes Pedro Soares Martinez, Bernardo Mendes de Almeida (Conde de Caria) e Filipe de Bragança.
Quanto ao segundo aspecto - o da matéria escrita, onde se multiplicavam as provocações à população e ao Governo Provisório e tendo como constante a agressão ideológica, realizando assim uma das finalidades da citada ofensiva da extrema-direita, mais exactamente, a preparação de um clima social e psicológico propício ao êxito da manobra.
O autor desses textos é Manuel Múrias, salazarista dos mais convictos, responsável, juntamente com Míguel Freitas da Costa, pela orientação deste periódico, o qual, na edição com a data de 28 de Setembro, anunciava implicitamente a vitória sobre as forças democráticas.
5. Além destes três citados jornais, muitos outros colaboraram na propagação do clima contra-revolucionário. Uns, ligando-se directamente a elementos activos de partidos reaccionários e outros, apenas por identificação ideológica.
É curioso citarem-se alguns, para exemplo, sem se esgotar, porém, a sua enumeração. Assim, referimos de Lisboa "A Resistência" e o "Economia e Finanças", de Braga "O Clarim", de Ovar o "João Semana", de Valença do Minho "O Valenciano", de S. Tiago (Seia) o "Mensageiro Paroquial", de Beja o "Jornal do Sul", o "Jornal da Bairrada", o "Vilaverdense", o "Jornal de Famalicão".
Seria longa a lista de publicações que procuravam denegrir a nova ordem portuguesa. Em especial no Minho, encontramos muitas outras que poderíamos abarcar nesta referência. Julgamos desnecessário prolongá-la, pois o teor de muitos outros jornais de província facilmente evidencia o seu reaccionarismo”.


Creio que está esclarecido o mistério das letras que nunca foram apresentadas a pagamento pelos novos responsáveis do Banco; pura e simplesmente a “comissão ad hoc” tinha-se apoderado delas como documentos comprovativos dos crimes da reacção, e nunca mais as devolveu. Perderam-se. E deixaram de existir para o banco: não estavam na instituição!
Muito mais existe no delicioso relatório, no mesmo estilo de detective de caserna. Mas lá iremos. Em pequenas doses.