segunda-feira, outubro 27, 2003

Nelson e Corção

Tenho a certeza que a primeira vez que li um artigo de Nelson Rodrigues foi em 1975, nas páginas de “O Dia”.
O quotidiano lisboeta, dirigido então por Vitorino Nemésio ou já por David Mourão Ferreira, ou pelos dois, não recordo bem, publicava pequenas crónicas do grande escritor brasileiro.
Fixei o momento porque o sabor único e inconfundível daquela prosa vigorosa, viva, envolvente, a visão daqueles pedaços de vida que ali ficavam expostos, com um toque de humor incomparável, constituíram de imediato um deslumbramento, uma descoberta que nunca mais esqueci.
Não se escrevia assim em Portugal – e ainda hoje se pode dizer o mesmo.
Desde então nunca mais afastei a minha atenção do formidável Nelsão. Entretanto, passou tempo, e muitos outros partilham o gosto. Não era assim nessa época, em que o autor era aqui um desconhecido, e pouco ilustre.
Mas falo de Nelson para falar de Corção.
Este nem depois de morto logrou o reconhecimento. Continua no índex.
Não por falta de empenho de Nelson: sempre, até ao fim, este exaltou o amigo em todas as oportunidades que lhe deixavam. Sempre sublinhou a grandeza do vulto cultural que os bloqueios imperantes condenavam ao silêncio.
A dedicação de Nelson chegou ao ponto de andar a fazer peditório a favor da “Permanência”, a revista de Gustavo Corção, lutando contra o iminente encerramento pela razão do costume.
Fica aqui o artigo, que já tinha prometido: uma crónica de Nelson Rodrigues sobre a personalidade de Gustavo Corção.


Tudo em Corção é Amor

Outra figura brasileira consagrada pelos palavrões: - Gustavo Corção. Ninguém diria, de maneira sucinta e inapelável: "É uma besta!" Bem que as esquerdas gostariam que o fosse. Mas os seus piores inimigos sabem, e não teriam o cinismo de negar, que Gustavo Corção é uma das inteligências mais sérias do Brasil. Certa vez aconteceu-me uma passagem extraordinária com o grande pensador católico.
Era domingo. Voltava eu, não sei se de um clássico ou de uma pelada. Na saída do Estádio Mário Filho, alguém me chama. Volto-me e dou de cara com um amigo, uma flor das esquerdas, um doce radical como o Antônio Calado ou como o Hélio Pelegrino. Eu e o amigo caminhamos no meio da torcida. Acontecera um empate e ninguém gritava. A multidão tinha algo de tristeza fluvial no seu lerdo escoamento. Então, o meu companheiro falou: - "Estou besta! Com a minha cara no chão!" Pensei que ele, Fluminense como eu, estivesse desiludido com o Tricolor (realmente, o meu clube não compra ninguém). Mas ele continuou: - "Nunca pensei que o Corção..." Fez uma pausa e repetiu: - "Estou besta! besta!"
Entre parênteses, esse meu amigo tem, pelo Corção, um ódio comovente. Não lhe diz o nome sem acrescentar... Acrescentar não. Não lhe diz o nome sem lhe antecipar um palavrão. Chega ao nome pelo palavrão. E, súbito, falava do inimigo com uma impostação diferente e, mesmo, inédita. Perguntei-lhe: - "Mas estás besta por quê?"
Esquecia-me de dizer que o meu amigo levava um radinho de pilha. Abriu uma pausa na conversa para ouvir os comentários do João Saldanha e as gravações dos "goals". Só depois do Saldanha é que voltamos ao Corção. Rádio desligado, e o outro me perguntou, na sua impressão profunda: - "Leste o artigo que ele escreveu? Que escreveu sobre o filho? Ó rapaz! O artigo do Corção sobre o filho?"
Não era um artigo do dia ou da véspera. Da sua publicação, transcorrera toda uma semana. E, através dos sete longos dias, o artigo do Corção ficara badalando dentro do meu amigo, como um sino inexorável. Membro da "festiva", freguês do "Antonio's", havaiano de praia, relera o inimigo umas quinze vezes. E a cada leitura a sua perplexidade era cada vez mais amarga. Súbito, via um novo Corção, um Corção jamais suspeitado, um anti-Corção.
Vejam vocês: - o grande prosador escrevera uma página sobre o filho, Rogério. Foi um artigo de funda e dilacerada ternura. O nosso Rogério estava no Vietnam, como um dos representantes do Brasil. Lá, as balas não escolhem, não discriminam, e tanto estouram a cara de americano, como de brasileiro. E havia no artigo todo um amor insuportável, e uma solidão desesperadora.
O assombro do meu amigo tinha a sua lógica. Durante anos, criara, e recriara, dia após dia, uma imagem hedionda do "reacionário". Ele imaginava que, se o Corção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria hediondez. Nunca lhe ocorrera que aquela besta-fera pudesse ter costumes, usos, gestos, como outro qualquer. Impossível um Corção tomando cafezinho ali na esquina; inadmissível uma gargalhada do Corção, ou um assovio do Corção. E aquele Corção pai, simplesmente pai, e simplesmente terno, e simplesmente infeliz, e simplesmente órfão do próprio filho, contrariava toda uma imagem feita de palavrões, de insultos, de baba.
Mas, vejam toda a operação psicológica do meu amigo. A princípio não entendera uma palavra, tão desconhecido, tão estrangeiro, tão alienado parecia aquele Corção vergado, sofrido, perdidamente solitário. Só depois é que, limpando a figura dos palavrões, dos ultrajes, das calúnias, é que o freguês do "Antonio's" pode chegar à luz última e verdadeira do inimigo.
Por fim, quem estava infeliz, na volta do Estádio Mário Filho, era o membro da festiva. A partir daquele momento, os seus palavrões soariam falsos aos próprios ouvidos. O meu amigo estava comovido e, pior, furioso com a própria comoção.
E, então, chegou a minha vez. Não me lembro de tudo o que disse de Gustavo e de Rogério. O esquerdista ouvia só, numa desesperada impotência para negar a imagem que eu ia elaborando de Corçâo. Expliquei-lhe que tudo em Corção é amor; poucas pessoas conheço com tanta vocação, tanto destino, para o amor. O que parece ódio, nos seus escritos, é ainda amor. Amor que assume a forma das grandes e generosas procelas.
Bate forte, muitas vezes. Mas sempre por amor. Está fatalmente ao lado da pessoa e contra a antipessoa. É a luta que o apaixona. Todos os dias, lá vai ele atirar o seu dardo contra as hordas da antipessoa. Eis o que eu repeti para o meu amigo das esquerdas: - o Corção tem um coração atormentado e puro de menino.
Quem o sabe ler, percebe em todos os seus escritos o pai de Rogério, sempre o pai de Rogério, querendo salvar milhões de filhos, eternamente.


Nelson Rodrigues

In “O Óbvio Ululante”, Livraria Eldorado Editora, 1968, pp. 164-166