domingo, setembro 21, 2003

Almada

Em dia de romarias (hoje foi o dia grande da romaria do Senhor Jesus da Piedade, junto a Elvas, e da Feira Franca de Avis, além das festas do Senhor Jesus dos Aflitos, bem perto de Évora, e ainda da feira de Ferreira e das festas populares na Amieira e na Oriola) encontrei um poemeto de Almada Negreiros notoriamente inspirado em experiência alentejana.
Que experiência concreta era essa desconheço, por ignorar na biografia do autor qualquer ligação ao Alentejo.
Aqui o deixo de brinde aos meus leitores cá da província (os outros também podem ler, evidentemente).
Almada Negreiros não será, talvez, um dos nossos maiores poetas do século XX; e também talvez não seja um dos maiores romancistas, ou um dos maiores dramaturgos, ou um dos maiores pintores – e também não foi um dos maiores decoradores, ou bailarinos ...
Mas tudo isso ele foi; e o conjunto multifacetado da sua pujante personalidade artística fazem dele um dos casos mais significativos da nossa cultura do século passado - incontornável, como se diz agora. Com ele e por ele irrompeu no nosso meio artístico o impacto revolucionante do Futurismo; muito mais do que Santa Rita Pintor, ou Amadeu, ou outro qualquer cuja obra e ideias ficaram circunscritas ao reduzidíssimo circulo em que se moviam, foi Almada que trouxe a modernidade para Portugal.
O “Manifesto Anti-Dantas” perfila-se visivelmente como uma sequela do “Manifesto Futurista”, a abanar os academismos domésticos; toda a frenética actividade de renovação empreendida ao longo de décadas por Almada permitem-nos afirmar que nada depois dele ficou igual ao que era.
Ele tinha a noção disso; lembro-me da irritação indignada com que esbracejava contra o “professorzinho do Wisconsin” que tinha escrito algures que com a morte de Fernando Pessoa a geração de Orpheu tinha ficado sem cabeça.
Faiscavam de fúria aqueles enormes olhos negros, vivíssimos sob a boina basca, a encimar o rosto enrugado - sempre estranhamente jovens, até ao fim – quando lhe lembravam essa, de Jorge de Sena.
Efectivamente, Almada, que prezava Pessoa, e o admirava, e tinha sido sempre seu amigo, não precisara nunca para nada da cabeça do outro – e sabia bem que a energia difusora da geração de Orpheu não estava no génio introspectivo e sorumbático de Pessoa, mas sim na capacidade de irradiação do próprio Almada.
Mas o prometido é devido; aqui fica o poema, para que saibam que o Alentejo também se dança.



Rondel do Alentejo



Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.


Meia-noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.


Olhos caros
de Morgada
enfeitava
com preparos
de luar.


Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são de fitas
desafogo
de luar.


Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.


Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em folia
de luar.


Giram pés
giram passos
girassóis
os bonés,
os braços
estes dois
iram laços
o luar.


colete
esta virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem
de luar.


Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.


José de Almada Negreiros