sábado, agosto 23, 2003

As receitas da D. Gertrudes

Surgiu há pouco tempo nas livrarias um livrinho com o título supra. Para os não iniciados, faz espécie quem seja essa D. Gertrudes assim homenageada com honras de nome de livro. Mas se disser que se trata da viúva de Miguel Galito, logo muitos rostos se abrem em sorriso franco.
Passou já muito tempo. Na longínqua década de sessenta, quando todo este território era um vasto deserto no que respeita a amesendação (havia o “Fialho” em Évora, o “Águias de Ouro” em Estremoz... e chega) um casal de humildes aldeões de um lugar ignoto, a Aldeia da Serra, fez de uma tasca um restaurante.
Rapidamente, em propagação boca a boca, o lugar tornou-se objecto de culto: faziam-se excursões para ir ao “Galito”! Nunca a Aldeia da Serra tinha visto tanta gente. Durante anos, sobretudo aos fins de semana, era um corropio de gente a perguntar pela estrada para a Serra d`Ossa.
Durou anos a epopeia do restaurante familiar, com o casal a batalhar dia e noite para maior glória da cozinha alentejana. Servida pelos saberes ancestrais do povo da serra, a cozinha do “Galito” triunfava em toda a linha.
Com o tempo veio o cansaço, e a solidão (o único filho, Henrique, tinha estabelecido a sua vida na zona de Lisboa) e o “Galito” acabou por mudar de mãos – para nunca mais ser o mesmo. A meio da década de setenta, Miguel Galito e D. Gertrudes foram também viver para a área da capital, como parece ser a sina fatal dos alentejanos. Aí chegados, e como as solicitações eram muitas, o bichinho ainda venceu a vontade de descansar: durante algum tempo o casal explorou um restaurante na margem sul, que nunca cheguei a conhecer, e também durante uma temporada a D. Gertrudes deu a sua mão à cozinha do “Barrote Atiçado”, na Pontinha – fazendo deste a melhor mesa alentejana da capital e arredores.
Nestes anos mais próximos a idade impôs finalmente o descanso. Miguel Galito partiu. D. Gertrudes ainda cá está, vivendo a serena velhice de quem provou que também na cozinha se pode ganhar o direito às palmas do heroísmo. E o carinho de alguém resolveu organizar este livrinho de homenagem, simples, despretensioso e autêntico. Achei curioso que fosse o Duarte Moral: devido à sua idade, o nosso mais volumoso jornalista só pode ter conhecido os tempos de glória do “Galito”, eventualmente, pela mão de seu pai. É provável, que aquilo era então o passeio familiar de fim de semana.
Dizem-me que nestes tempos mais próximos o Henrique Galito (também ex-aluno do glorioso Liceu Nacional de Évora), entretanto reformado da sua profissão de bancário, abriu e dirige um pequeno restaurante de grande êxito, ali para os lados do Largo da Luz. Mas isso não sei, que já são tempos do meu pessoal exílio.
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